TERMOS NORDESTINOS | OS BAITOLAS DE VERDADE: ORIGEM DO TERMO BAITOLA

 


OS BAITOLAS DE VERDADE: ORIGEM DO TERMO BAITOLA

                                                                                             
                                                                                                       
                                                                                                    Heitor Feitosa Macêdo


         Às vezes uma palavra é suficiente para denunciar um costume secular, escondido entre práticas completamente adversas, contrárias, antípodas, em negativas subconscientes de certos hábitos. É exatamente nesse contexto que se põe o termo “baitola”, frequentemente propalado pelos sertões nordestinos.
         Essa designação é comum no Ceará, o que não significa que tal expressão tenha sido gestada unicamente nessa parte do Nordeste, pois se observa o uso desse vocábulo também em regiões circunvizinhas. Além disso, a etimologia aponta relativa generalidade do termo no território brasileiro. Somando-se a tudo isso a antiga e frequente prática da homossexualidade.
         Num retrospecto bíblico encontra-se desabrida condenação à prática do coito anal, tendo Deus aspergido uma chuva de enxofre sobre Sodoma e Gomorra, matando seus habitantes carbonizados. Pobres sodomitas que morreram pelo amor e pelo "mau" uso de seus orifícios! Então, num mundo sustido na religião monoteísta, pela qual o Ocidente fora dominado, é bastante natural a aplicação de sanções a esse “nefando pecado”.
         Porém, para que não se perca, voltando mais um pouco no tempo, veem-se os gregos e romanos, gente que gozava da virilidade de mancebos enquanto escrevinhavam seus tratados de filosofia. Esses cultores de rapazes legaram aos tempos modernos inestimáveis compêndios científicos, que por muito tempo foram suprimidos pela Igreja, pois, afinal, tratavam-se de ideias criadas em seio politeísta.
         O homem quinhentista, ao desembarcar na terra de pindorama (terras das palmeiras, como era chamado o Brasil pelos índios), trazia em sua bagagem os mesmos tabus da Idade Média, temendo o fogo da inquisição pela impudicícia.
         Essa sociedade “genitalizada” e teoricamente monogâmica disseminou-se pelos sertões, incluindo os do Nordeste. A família formava a célula desse corpo social, cabendo ao pater familias decidir sobre os destinos da sua propriedade, ou seja, além dos bens imóveis, a mulher, os filhos e os escravos.
         Ao patriarca era dado o desfrute de possuir “de fato” quantas mulheres lhe aprouvesse, impondo-se a monogamia unicamente à classe feminina. Quanto aos filhos, cabia também ao chefe da família escolher-lhes a sorte, mesmo aos rebentos varões, ditando qual seria assexuado, seguindo a vida sacerdotal; e reservando às filhas casamentos escolhidos, geralmente, entregando-as ainda pré-adolescentes a outros velhos ricos.
         Rodeado de mulheres escravas, negras ou índias, incluindo-se as cunhãs surripiadas das aldeias pelas chamadas guerras justas, o patriarca geria verdadeiro harém. Muitos ficaram célebres por esse seu poder procriador, havendo destaque para Jerônimo de Albuquerque, apelidado de o Torto, por perder um olho em luta com os índios. Esse indivíduo teve 26 filhos, por isso ser também chamado de o “Adão pernambucano”[1].
         Jerônimo de Albuquerque viveu maritalmente com a índia Maria do Espírito Santo Arco Verde (filha do cacique Ubiraubi - Arco Verde), nascendo dessa união Catarina de Albuquerque (a Velha), a primeira filha do casal e a mais amada pelo pai.
         Catarina casou-se com um fidalgo florentino, Felipe de Cavalcante, que havia migrado da Itália por sofrer perseguição da poderosa família Médice.[2] Então, veio ele residir na Capitania de Pernambuco, deixando numerosa prole, da qual descende quase toda população nordestina, não sendo exagero afirmar que a maioria das famílias brasileiras possui alguma gota de sangue desse notável patriarca.
          Esses descendentes de Felipe e Catarina se lançaram ao sertão, espalhando-se pelos quatro ventos, e legando à atualidade as populações desses rincões. Destaque-se que os Cavalcante desmembraram-se em outras famílias, quase sempre aristocráticas, as quais, por muito tempo, ostentaram riqueza e valentia, inclusive no semiárido.  
         Porém, contrastando com o estereótipo sertanejo, Felipe carregava hábitos discrepantes aos institucionalizados pela tradição dos rudes moradores da caatinga. Isso pelo fato de o dito fidalgo ser acusado perante o Tribunal do Santo Ofício por sodomia, sendo denunciado por Belchior Mendes de Azevedo.[3]
         A sodomia era tratada por “pecado nefando”, e os dicionários mais antigos não a especificam, simplesmente registrando sua significação da seguinte forma: “Pecado, por antonomásia, nefando, e por consequência indigno de definição por sua torpeza”.[4] Mas, o que seria nefando?
         Segundo o velho dicionário do Padre Bluteau, nefando é coisa indigna de exprimir com palavras, coisa da qual não se pode falar sem vergonha. O mesmo autor remete o pecado nefando, o de sodomia, ao demônio Incubo ou Sucubo, que ora serve de homem, ora de mulher.[5] Mas, como é sabido, trata-se da conjunção sexual anal, entre homem e mulher ou entre dois homens.
         Diz Gilberto Freyre[6] que os filhos família (filhos dos fazendeiros) muitas vezes iniciavam sua vida sexual com os moleques (filhos dos negros escravos), companheiros de brinquedos, sendo estes também chamados de “leva pancadas”, pois, frequentemente, eram vítimas de brincadeiras sádicas dos senhorzinhos.
         Ressalte-se a miscigenação do “tipo brasileiro”, já que é eticamente errado falar em raça, uma verdadeira mistura de brancos, negros e índios, sendo que estes últimos (os ameríndios) também não ficaram alheios à prática do amor sáfico ou socrático, ou seja, entre eles também houve homossexualismo.
         Os indígenas estavam organizados em uma sociedade “gerontocrática” [7], onde os mais velhos exerciam influência sobre as deliberações do restante da tribo. E, sendo a guerra uma constante entre aqueles povos, o homem adulto era mais valorizado do que as crianças e mulheres.[8] A masculinização era uma necessidade.
         Em regra, os chefes tupis possuíam mais de uma mulher, registrando-se 13 esposas para Cunhambebe e 34 para Amendua.[9] Entretanto, essa virilidade era posta a prova durante o desenvolvimento dos indivíduos mais jovens, que passavam de mitã a culumim-mirim, depois a culumim-guaçu,[10] até chegar a avá e tujuáe.[11]
         Nas fases iniciais, os jovens eram postos em compartimentos privativos aos homens, onde passavam por rituais secretos. Esse ambiente era chamado de “Baito”, que, segundo Gilberto Freyre, era “uma espécie de lojas de maçonaria indígena”.[12]  Os índios praticavam a pederastia sem ser por escassez ou privação de mulher, quando muito, pela influência do período de internato nessas casas secretas.[13]
         Entre os gentios do sexo masculino, deitar com as tias, irmãs e filhas não lhes causava nenhum embaraço, e muito menos os constrangia copular com outros machos. Sobre essa luxúria, diz Gabriel Soares de Sousa que muitos índios morriam exaustos de tanto fornicarem, além disso, eles aumentavam o órgão fálico com os pelos de um bicho peçonhento, tornando suas genitálias inchadas e disformes, ademais, assevera o autor que alguns valentes índios se gabavam por se servirem de outros homens, havendo nos sertões “alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas”.[14]
         Frise-se que a homossexualidade não se restringia aos homens, existindo também mulheres que faziam as vezes de varões, como fora observado por Gandavo[15]:

Algumas índias a que também entre eles determinam de ser castas, as quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher.         
         
        Muitas etnias ameríndias habitaram o território cearense, inclusive os tupis, sob o nome de Tabajaras, moradores no litoral da Capitania. Outro tanto de índios residia no interior, chamados genericamente de tapuias, ou seja, contrários aos tupis, índios bravios ou de língua travada (que não falavam a língua geral, o tupi-guarani), figurando entre eles os Cariús, Jenipapos, Cariris, Jucás, Icós, Canindés etc.
         O intercurso racial resultou numa aculturação, isto é, na formação de uma cultura híbrida, sendo a palavra “baitola” uma dessas reminiscências. Algumas versões folclóricas tentam explicar o étimo de tal expressão, contudo, terminam em suposições jocosas e insustentáveis.
Em verdade, “baitola” ou “baitolo” derivam do termo indígena supramencionado, “baito”, recinto reservado aos jovens, com o acréscimo do sufixo “la” ou “lo”, certamente um hibridismo provindo da língua portuguesa, pois a fonética gentílica desconhecia o som da letra “l”. Cabe destacar que uma variante tupi para baito é “baité”, desmembrando-se em “mbaé”, aquele que é, e “ité”, friodiscordante.[16]  
No Ceará, ainda hoje, também é comum ouvir-se o termo “baitinga”[17], cuja etimologia concerne a “baito”, com o acréscimo de “tinga” (branco), constituindo outra remissão índia aos indivíduos homoafetivos de cor branca.
Talvez a discussão a respeito da etimologia de uma palavra dessa natureza pareça algo insignificante. Porém, representa uma das principais consequências do etnocídio acometido aos povos indígenas, pois o uso da língua bugre fora veemente proibido, inclusive em muitas aldeias, e oficialmente banido pelo Marquês de Pombal em 1758.
 É necessário dizer que uma palavra pode ir além das definições aduzidas pelos dicionários, como a expressão em comento, que ultrapassa a sua literalidade jocosa e discriminante, para alcançar importantes fatos históricos, a partir de sua etimologia e da variação semântica no decorrer do tempo.   
         Desta feita, vê-se que, talvez, inexista brasileiro que não possua um “gay” na família, mesmo que seja um tataravô da era colonial. Não ficando de fora os brancos, nem mesmo os negros, e quanto aos índios, são estes, indubitavelmente, os precursores dos baitolas de verdade.   
        

BIBLIOGRAFIA:

Bluteau, D. Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712.

Clerot, Leon F.R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2011.

Fernandes, Florestan, A função social da guerra na sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006.

Fonseca, Antônio José Vitoriano Borges da, Nobiliarquia Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1935.

Freyre, Gilberto, Casa – Grande & Senzala, 18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977.

Gandavo, Pedro de Magalhães, Tratado da Terra do Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008.

Seraine, Florival, Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950.

Sousa, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010.    



[1] Freyre, Gilberto, Casa – Grande & Senzala, 18ª Ed., Editora José Olímpio, Rio de Janeiro, 1977, p. 278.
[2] Fonseca, Antônio José Vitoriano Borges da, Nobiliarquia Pernambucana, Volume I, Rio de Janeiro, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1935, p. 208.
[3] Freyre, op. cit., p. 321.
[4] Bluteau, D. Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra/Portugal, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712, p. 688.
[5] Ibidem, op. cit., p. 698.
[6] Freyre, op., cit., p 50.

[7] Fernandes, Florestan, A função social da guerra na sociedade tupinambá, São Paulo, Editora Globo, 2006, p. 204, 190 e 289.
[8] Ibidem, op. cit., p. 206.
[9] Ibidem, op. cit., p. 271.
[10] Ibidem, op. cit., p. 196 e 197.
[11] Ibidem, op. cit., p. 188 e 189.
[12] Freyre, op. cit., p 118 e p. 136.
[13] Ibidem, op. cit., p. 119.
[14] Sousa, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, São Paulo, Ed. Hedra, 2010, p. 299.
[15] Gandavo, Pedro de Magalhães, Tratado da Terra do Brasil, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2008, p. 136.
[16] Clerot, Leon F.R., Glossário Etimológico Tupi/Guarani, 1ª Reimpressão, Brasília - DF, Edições do Senado Federal, 2011, p. 87.
[17] Seraine, Florival, Revista do Instituto do Ceará, Tomo LXIV, Ano 1950, p. 10.

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