A música de Raul Seixas é conhecida por sua mistura de rock, folclore brasileiro e uma filosofia heterodoxa que frequentemente flertava com o que muitos considerariam heresias do ponto de vista da ortodoxia cristã. Ele questionava dogmas, explorava o ocultismo e apresentava conceitos que subvertiam a moralidade tradicional. As principais "heresias" em sua obra se concentram na união do bem e do mal, na figura do Messias e na relação entre Jesus e Deus Pai.
A União do Bem e do Mal
Uma das "heresias" mais recorrentes na obra de Raul é a fusão de opostos. Em vez de uma batalha entre o bem (Deus) e o mal (o Diabo), ele propunha uma união ou, pelo menos, uma coexistência. Na canção "Sociedade Alternativa", a letra diz: "Pois a anarquia da vida é a lei fundamental / E o Diabo é o pai e a mãe do que é bom e do que é mau".
Essa visão é radicalmente diferente da teologia cristã, que separa o bem e o mal de forma absoluta. Raul sugeria que a vida é um emaranhado de dualidades, e que a verdadeira liberdade reside em aceitar essa complexidade, em vez de lutar contra ela. Para ele, o Diabo não era uma figura de maldade pura, mas uma força da natureza, essencial para o equilíbrio do universo. Essa ideia reflete a filosofia thelêmica de Aleister Crowley, que buscava a superação da dualidade e a união dos opostos.
A Figura do Messias e o "Eu"
Raul Seixas também subverte a figura do Messias. Em vez de esperar por um salvador externo, ele propõe que cada indivíduo é seu próprio messias. A canção "Gita" é o exemplo mais claro disso. A letra sugere que o homem deve "se livrar da tentação da carne e da morte" e se tornar "um com Deus". A frase parafraseada de "Eu sou a luz do mundo" (diretamente da Bíblia, mas usada por Jesus) é repetida, mas Raul a aplica a si mesmo e a cada um de seus ouvintes.
Essa ideia é uma heresia para o cristianismo, pois Jesus Cristo é o único Messias e Salvador. Raul, no entanto, democratiza o conceito de divindade, sugerindo que o divino não está fora, mas dentro de cada um. A "salvação" não viria por meio da fé em um ser externo, mas pela descoberta da própria "verdadeira vontade" e da divindade interior.
A Relação de Jesus e o Pai
A relação entre Jesus e o Pai na teologia cristã é de unidade perfeita, de Trindade. No entanto, na música de Raul, essa relação é complexa e cheia de questionamentos.
Raul não apenas rejeita a autoridade de Cristo, mas também a sua santidade absoluta. Em suas letras, Jesus é tratado não como uma figura intocável, mas como um rebelde, um "maluco beleza" que se opôs ao establishment de seu tempo. Ele o coloca no mesmo nível de outros "desajustados" da história, o que é uma heresia do ponto de vista da divindade de Cristo.
"Maluco Beleza", de Raul Seixas, celebra a liberdade e a autenticidade como um contraponto à busca por normalidade. A letra questiona a tentativa de "ser um sujeito normal e fazer tudo igual", preferindo um caminho de individualidade. Raul Seixas e Paulo Coelho, os compositores, criaram a figura do "maluco beleza" para simbolizar alguém que, de forma consciente, escolhe viver fora dos padrões sociais, sem ser autodestrutivo. Essa "loucura" é controlada pela lucidez, como mostram os versos "Controlando a minha maluquez / Misturada com minha lucidez", reforçando a ideia de que a sua rebeldia é uma escolha autônoma e saudável, e não um ato de irresponsabilidade.
A música também expressa a tranquilidade de quem encontrou o seu próprio caminho, sugerindo que a verdadeira liberdade vem da ausência de expectativas fixas. O refrão, que se repete com a afirmação "Vou ficar, ficar com certeza, maluco beleza", se tornou um hino para aqueles que se identificam com essa postura. A canção de Raul Seixas não é apenas sobre ser diferente, mas sobre a coragem de ser genuíno e a paz de viver a sua própria vida, independentemente das normas impostas pela sociedade.
Em suma, a música de Raul Seixas não é um ataque direto à religião, mas uma profunda exploração de conceitos religiosos a partir de uma perspectiva anárquica e espiritual. Suas "heresias" são, na verdade, ferramentas filosóficas para quebrar dogmas e para que o ouvinte possa encontrar sua própria verdade, sua própria liberdade e sua própria divindade.
Referências Bibliográficas
SEIXAS, Raul. Gita. Álbum de 1974. A canção de mesmo nome é a principal fonte de seus conceitos sobre a divindade do "Eu".
SEIXAS, Raul. O Maluco Beleza. Canção de 1977 que explora a figura de Jesus de forma iconoclasta.
GUTFREIND, Paulo. Raul Seixas: a filosofia do maluco beleza. Este livro explora as influências filosóficas na obra de Raul, incluindo o esoterismo e o questionamento de dogmas religiosos.
CROWLEY, Aleister. O Livro da Lei (Liber AL vel Legis). A filosofia de Crowley é uma das principais influências de Raul Seixas e a base de sua visão sobre a união de opostos e a divindade individual.






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